Ano Internacional das Pessoas Deficientes proclamado para 1981 pela Organização das Nações Unidas. Documento da Santa Sé (1981)

Documento da Secretaria de Estado do Vaticano por ocasião do Ano Internacional das Pessoas Deficientes (1981)

A todos os que se dedicam ao serviço das pessoas deficientes

Desde o primeiro momento acolheu a Santa Sé com favor a iniciativa das Nações Unidas de proclamar 1981 “Ano Internacional das pessoas deficientes”. Se, de facto; pelo seu número — calcula-se que ultrapassam 400 milhões — mas sobretudo pela sua particular condição humana e social, tais pessoas merecem o interesse prático da comunidade mundial, não pode faltar, nesta nobre empresa, a solicitude diligente e vigilante da Igreja, que — por sua natureza, vocação e missão — tem particularmente a peito a sorte dos irmãos mais débeis e provados.

Por isso, seguiu ela com grande atenção tudo quanto se foi até agora realizando em favor dos deficientes no plano legislativo, quer nacional quer internacional: dignas de relevo, a este respeito, são a Declaração dos direitos dos deficientes por parte da ONU e a Declaração relativa aos direitos das pessoas mentalmente retardadas — como também as aquisições e as perspectivas da investigação científica e social, as propostas inovadoras e as obras de vário género que se estão desenvolvendo neste sector. Tais iniciativas manifestam nova tomada de consciência do dever de solidariedade neste campo específico do sofrimento humano, tendo além disso presente que, nos Países do Terceiro Mundo, a sorte das pessoas deficientes é ainda mais grave e requer maior cuidado e mais solícita consideração.

A Igreja associa-se plenamente às iniciativas e aos louváveis esforços levados à prática a fim de melhorar a situação das pessoas deficientes e tenciona oferecer-lhes o seu contributo específico. Fá-lo, primeiro que tudo, por fidelidade ao exemplo e ao ensino do seu Fundador. Jesus Cristo, na verdade, reservou cuidado particular e prioridade para aqueles que sofrem, em toda a vasta gama da dor humana, rodeando-os de amor misericordioso durante o Seu ministério, e manifestando neles o poder salvífico da redenção que abraça o homem na sua singularidade e totalidade. Os marginalizados, os inferiorizados, os pobres e os doentes foram os destinatários privilegiados do anúncio, em palavras e obras, da Boa Nova do Reino de Deus que invade a história da humanidade.

A comunidade dos discípulos de Cristo, seguindo o Seu exemplo, levou a que florescessem, através dos séculos, obras de extraordinária generosidade, que testemunham não só a fé e a esperança em Deus, mas também fé e amor inabaláveis na dignidade do homem, no valor irrepetível de toda e cada uma das vidas humanas e no destino transcendente de quem é chamado à existência.

Na visão de fé e na concepção do homem que lhes é própria, os cristãos sabem que, também no ser deficiente, reluz no mistério a imagem e a semelhança que o próprio Deus quis imprimir na vida dos seus filhos; e, recordando-se que o mesmo Cristo quis misticamente identificar-se com o próximo que sofre, julgando como feito a Si mesmo tudo o que fosse realizado em favor dos mais pequenos entre os Seus irmãos (cf. Mt 25, 31- 46), sentem-se solicitados a servir n’Ele aqueles que a prova física feriu e diminuiu, e não pensam em retirar-se diante de nada do que deve ser realizado, seja mesmo com sacrifício pessoal, para lhes aliviar a condição de inferioridade.

Como não pensar nesta altura, com vivo reconhecimento, em todas as comunidades e associações, em todos os Religiosos e Religiosas, em todos os voluntários do laicado que se prodigam no serviço das pessoas deficientes, testemunhando a perene vitalidade daquele amor que não conhece barreiras.

É neste espírito que a Santa Sé, ao mesmo tempo que exprime — aos Responsáveis pelo bem comum, às Organizações internacionais e a todos aqueles que se dedicam ao serviço dos deficientes — a própria complacência e a palavra de ânimo pelas iniciativas empreendidas, julga útil recordar brevemente alguns princípios, que possam servir de guia quando se procuram tais pessoas, e sugerir também algumas linhas de acção.

I PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

1 . O primeiro princípio, que deve ser afirmado com clareza e vigor, é que a pessoa deficiente (seja-o por enfermidade congénita, em consequência de doenças crónicas, de acidentes, como também por debilidade mental ou enfermidade sensorial, qualquer que seja a natureza de tais lesões),é sujeito plenamente humano, com correspondentes direitos inatos, sagrados e invioláveis. Tal afirmação apoia-se no firme reconhecimento de o ser humano possuir uma própria dignidade única e um próprio valor autónomo, desde a concepção e em todos os estádios do desenvolvimento, quaisquer que sejam as suas condições físicas. Este princípio, que brota da recta consciência universal, deve ser tomado como o fundamento inamovível da legislação e da vida social.

Se bem se reflecte, poder-se-á mesmo dizer que a pessoa do deficiente, com as limitações e a dor que leva inscritas no seu corpo e nas suas faculdades, põe em maior relevo o mistério do ser humano, com toda a sua dignidade e grandeza. Diante da pessoa deficiente, ficamos introduzidos nas fronteiras secretas da humana existência e deste mistério somos chamados a aproximar-nos com respeito e amor.

2 . Como a pessoa portadora de deficiências é um sujeito com todos os seus direitos,deve encontrar facilidades para participar na vida da sociedade em todas as dimensões e a todos os níveis, que sejam acessíveis às suas possibilidades. O reconhecimento destes direitos e o dever da solidariedade humana constituem obrigação e encargo que requerem desempenho, criando-se condições e estruturas psicológicas, sociais, familiares, educativas e legislativas, idóneas para o acolhimento e o desenvolvimento integral da pessoa deficiente.

A Declaração sobre os Direitos das Pessoas Deficientes proclama, de facto, no n. 3, que “as pessoas inválidas têm o direito ao respeito pela sua dignidade humana. As pessoas inválidas — quaisquer que sejam a origem, a natureza e a profundidade da sua deficiência e invalidez — têm os mesmos direitos fundamentais que os seus concidadãos da mesma idade, o que implica em primeiro lugar o direito a viverem uma vida decente, tão normal e plena quanto possível”.

3 . A qualidade de uma sociedade e de uma civilização mede-se pelo respeito que ela manifesta para com os mais débeis dos seus membros. Uma sociedade tecnocraticamente perfeita, onde fossem admitidos só membros plenamente funcionais e onde quem não satisfizesse este modelo ou fosse incapaz de desempenhar o seu papel fosse marginalizado, encerrado ou, ainda pior, eliminado, deveria ser considerada como radicalmente indigna do homem, ainda que tal sociedade se viesse a mostrar economicamente vantajosa. Estaria, na verdade, pervertida por uma espécie de discriminação não menos condenável do que a racial,a discriminação dos fortes e dos “sãos” contra os débeis e os doentes. É necessário afirmar com toda a clareza que a pessoa deficiente é um de nós, participante da nossa mesma humanidade. Reconhecendo-lhe e promovendo-lhe a dignidade e os direitos, nós reconhecemos e promovemos a nossa mesma dignidade e os nossos mesmos direitos.

4 . A orientação fundamental, ao considerar os problemas relativos à participação das pessoas deficientes na vida social, deve ser inspirada pelosprincípios de integração, normalização e personalização. O princípio da integração opõe-se à tendência ao isolamento, à segregação e à marginalização da pessoa deficiente, mas vai ainda além de uma atitude de mera tolerância a seu respeito. Comporta o esforço para tornar a pessoa deficiente um sujeito de pleno direito, segundo as suas possibilidades, quer no âmbito da vida familiar, quer no da escola, do trabalho e, mais em geral, na comunidade social, política e religiosa.

Deste princípio deriva, em seguida, como natural consequência, o da normalização, que significa e implica o esforço tendente a reabilitar completamente as pessoas deficientes com todos os meios e as técnicas que estão hoje ao nosso dispor e, onde isto não se mostre possível, a realizar um quadro de vida e de actividades que se aproxime, o mais possível, do normal.

O princípio da personalização, por último, põe em vista que — nas curas de vário género, como também nas diversas relações educativas e sociais tendentes a eliminar as deficiências — se deve sempre considerar, proteger e promover, antes de tudo, a dignidade, o bem-estar e o desenvolvimento integral da pessoa deficiente, em todas as suas dimensões e faculdades físicas, morais e espirituais. Tal princípio significa e implica, além disso, a superação de certos ambientes característicos do colectivismo e do anonimato, para os quais a pessoa deficiente é por vezes relegada a viver.

II LINHAS DE ACÇÃO

1 . Não se pode deixar de fazer votos por que a tais enunciados — como aos da citada Declaração — seja dado pleno reconhecimento na comunidade internacional e nacional, evitando interpretações restritivas, excepções arbitrárias, se não mesmo aplicações contrárias à ética, que terminam por lhe destruir o sentido e o alcance.

Os progressos da ciência e da medicina permitiram, nos nossos dias, descobrir no feto alguns defeitos que podem dar origem a futuras deformações e deficiências. A impossibilidade, em que se encontra actualmente a medicina para lhes dar remédio, levou alguns a propor e mesmo a praticar a supressão do feto. Este comportamento nasce de uma atitude de pseudo-humanismo, que arruína a ordem ética dos  valores objectivos e não pode deixar de ser rejeitado pelas consciências rectas. Manifesta um modo de actuar que, se fosse aplicado numa época diversa, seria considerado gravemente anti-humano. Além disso, a negligência deliberada de assistência, ou qualquer acto que leve à supressão do recém-nascido deficiente, representam atentados não só contra a ética médica, mas também contra o direito fundamental e inalienável à vida. Não se pode dispor a bel-prazer da vida humana, arrogando-se a pessoa sobre ela um poder arbitrário. A medicina perde o seu título de nobreza quando, em vez de atacar a doença, ataca a vida; de facto, a prevenção deve ser contra a doença, não contra a vida. E não se poderá nunca afirmar que se quer levar conforto a uma família, suprimindo um dos seus membros. O respeito, a dedicação, o tempo e os meios requeridos pela cura das pessoas deficientes, mesmo das gravemente atacadas nas faculdades mentais, é o preço que uma sociedade deve generosamente pagar a fim de se manter realmente humana.

2 . Da clara afirmação deste ponto deriva como consequência o dever de realizar mais extensas e apropriadas investigações para debelar as causas das deficiências. Muito, certamente, foi feito nestes últimos anos neste campo, mas resta por fazer mais ainda. Aos homens de ciência pertence a nobilíssima tarefa de colocar a própria competência e estudos ao serviço do melhoramento da qualidade e da defesa da vida humana. As tendências actuais no campo da genética, da fetologia, da perinatologia, da bioquímica e da neurologia, para mencionar apenas algumas disciplinas, permitem alimentar a esperança de sensíveis progressos. Um estudo unificado das investigações não deixará, como é desejável, de chegar a resultados animadores num futuro não longínquo.

Estas iniciativas de investigação fundamental e de aplicação dos conhecimentos adquiridos merecem portanto mais decidido impulso e mais concreto apoio. A Santa Sé faz votos por que as Instituições Internacionais, os Poderes públicos de cada nação, os Organismos de investigação, as Organizações não governativas e as Fundações particulares queiram sempre estimular mais a investigação e destinar-lhe os fundos necessários.

3 . A acção prioritária de prevenção dos deficientes deveria levar a reflectir também sobre o preocupante fenómeno de pessoas que, em número elevado, sofrem tensões e choques que lhes perturbam a vida psíquica e interior. Prevenir estas deficiências e promover a saúde do espírito, significa e implica um esforço concorde e criativo para favorecer uma educação integral, um ambiente, relações humanas e instrumentos de comunicação em que a pessoa não fique mutilada nas suas mais profundas exigências e aspirações — em primeiro lugar as morais e espirituais — e não sofra violências que possam acabar por comprometer o seu equilíbrio e o seu dinamismo interior. Impõe-se uma ecologia espiritual ao lado de unia ecologia natural.

4 . Quando a deficiência, não obstante a aplicação responsável e rigorosa de todas as técnicas e dos cuidados hoje disponíveis, se revela irremediável e irreversível, dever-se-ão buscar e aplicar todas as outras possibilidades de crescimento humano e de integração social que estão disponíveis para quem esteja afectado por ela. Além do direito aos cuidados médicos apropriados, a Declaração das Nações Unidas enumera outros direitos que têm como objectivo a integração ou a reintegração, o mais completa possível, na sociedade. Tais direitos têm repercussão muito ampla num conjunto de serviços existentes ou que deverão ser organizados, entre os quais podem mencionar-se a organização de um adequado sistema educativo, a formação profissional responsável, os serviços de consulta e um apropriado lugar de trabalho.

5 . Há um ponto que parece merecer especial atenção. A Declaração das Nações Unidas, sobre os direitos das pessoas deficientes, afirma que “as pessoas inválidas têm o direito a viver com as suas famílias ou com parentes adoptivos” (n. 9). A efectiva aplicação deste direito mostra-se extremamente importante. Com efeito, é no lar doméstico, circundada pelos afectos familiares, que a pessoa deficiente encontra o meio mais natural e mais adaptado para o desenvolvimento. Tendo em conta esta configuração primordial da família para o desenvolvimento e a integração da pessoa deficiente na sociedade, os responsáveis pelas estruturas médico-sociais e ortopedagógicas deveriam projectar a própria estratégia a partir da família e tomando esta como principal ,força dinâmica no processo de cura e de integração social.

6 . Com este propósito, será necessário ter presente a importância decisiva que reveste o auxílio que será necessário oferecer no momento em que os pais descobrem com dor que um filho seu é deficiente. O trauma que daí deriva pode ser de natureza tão profunda e determinar uma crise tão forte, que abale todo o sistema de valores. A falta de precoce assistência e de sustentáculo adequado nesta fase pode ter consequências nefastas, tanto para os pais como para a pessoa deficiente. Não nos deveremos portanto contentar unicamente com o exame diagnóstico, deixando depois os pais abandonados a si mesmos. O isolamento e a rejeição por parte da sociedade poderiam levá-los a não aceitar ou, Deus o não permita, a expulsar a prole deficiente. É necessário, portanto, que as famílias sejam circundadas pela profunda compreensão e simpatia por parte da comunidade e recebam das associações e dos poderes públicos assistência adequada, desde quando se descobre a deficiência num seu membro.

A Santa Sé, consciente da heróica força de ânimo deles requerida, não pode deixar de prestar um contributo de apreço e exprimir profundo reconhecimento àquelas famílias que, generosa e corajosamente, aceitaram tomar a seu cuidado e mesmo adoptar crianças deficientes. O testemunho que elas dão à dignidade, ao valor e à sacralidade da pessoa humana merece ser publicamente reconhecido e sustentado por toda a comunidade humana.

7 . Quando circunstâncias particulares ou exigências especiais, que têm por fim a reabilitação da pessoa deficiente, exigem a estada temporária ou mesmo permanente desta, fora do lar doméstico, as casas de acolhimento e as instituições que tomam o lugar da família deveriam, no modo de serem organizadas e de funcionarem, aproximar-se, quanto possível, do modelo familiar, evitando a segregação e o anonimato. Será portanto necessário prover a que, durante a permanência nestes centros, os laços das pessoas deficientes, com a família e com os amigos, sejam cultivados com frequência e espontaneidade. O cuidado amoroso e a dedicação — além da competência profissional dos pais, familiares e educadores — têm obtido, segundo múltiplos testemunhos, resultados de insuspeitada eficácia para o desenvolvimento humano e profissional das pessoas deficientes. A experiência demonstrou — e isto parece ponto importante de reflexão — que num ambiente humano e familiar favorável, cheio de respeito profundo e de sincero afecto, as pessoas deficientes podem desenvolver, de modo surpreendente, as suas qualidades humanas, morais e espirituais, até se tornarem, por sua vez, dadoras de paz e mesmo de alegria.

8 . A vida afectiva das pessoas deficientes deverá receber particular atenção. Quando, sobretudo por causa da deficiência, estivessem impossibilitadas de contrair matrimónio, é importante que não apenas sejam convenientemente protegidas da promiscuidade e da exploração, mas que possam também encontrar uma comunidade cheia de calor humano, em que a necessidade que têm, de amizade e de amor, seja respeitada e satisfeita em conformidade com a sua inalienável dignidade moral.

9 . A criança e o jovem deficientes têm evidentemente o direito à instrução. Esta ser-lhes-á assegurada, quanto possível, por meio de uma escolaridade normal, ou também mediante escolas especializadas segundo a natureza dos deficientes. Quando vier a ser precisa escolarização domiciliar, é para desejar que as Autoridades competentes forneçam os meios necessários às famílias. Deverá igualmente ser tornado possível e facilitado o acesso ao ensino superior e uma oportuna assistência pós-escolar.

10 . Momento particularmente delicado, na vida da pessoa deficiente, é a passagem da escola à inserção na sociedade ou na vida profissional. Nesta fase a pessoa necessita da particular compreensão e do encorajamento dos diversos organismos da comunidade. Toca aos poderes públicos garantir e promover, com medidas eficazes, o direito das pessoas deficientes à preparação profissional e ao trabalho, de modo que possam inserir-se numa actividade profissional para que sejam idóneas. Grande atenção deverá ser dirigida para as condições de trabalho; tais as atribuições de lugares em função das deficiências, os salários justos e as possibilidades de promoção. É bastante recomendável uma informação prévia fornecida aos dadores de trabalho acerca do emprego conveniente, das condições e da psicologia das pessoas deficientes. Estas, na verdade, encontram diferentes obstáculos no sector profissional, como, por exemplo, o sentimento de inferioridade diante do próprio aspecto ou do possível rendimento, a preocupação de incorrer em incidentes de trabalho, etc.

11 . Claro, a pessoa deficiente possui todos os deveres civis e políticos, que pertencem aos outros cidadãos, e deve ser, em princípio, habilitada para o exercício deles. Certas formas de deficiências, todavia — pense-se na categoria numericamente importante dos portadores de deficiências mentais —, podem constituir obstáculo ao exercício responsável de tais direitos. Também nestes casos se deverá proceder não em forma arbitrária ou aplicando medidas repressivas, mas com base em rigorosos e objectivos critérios ético-jurídicos.

12 . O deficiente, por outro lado, deverá ser solicitado a não reduzir-se a ser apenas sujeito de direitos, habituado a gozar dos cuidados e da solidariedade dos outros, em atitude de mera passividade. Não é somente aquele a quem se dá; deve ser ajudado para se tornar também aquele que dá, e na medida de todas as possibilidades próprias. Momento importante e decisivo na formação será atingido quando ele tomar consciência da sua dignidade e dos seus valores e se der conta de que alguma coisa se espera de si e que também pode e deve contribuir para o progresso e o bem da sua família e da comunidade. Deve ter de si mesmo uma ideia realista, é certo, mas também ideia positiva, fazendo-se reconhecer como pessoa capaz de suportar responsabilidades, capaz de querer e de colaborar.

13 . Numerosas pessoas, associações e instituições dedicam-se hoje por profissão, muitas vezes por autêntica vocação humanitária e religiosa, à assistência aos deficientes. Em não poucos casos estes últimos mostraram preferir pessoal e educadores “voluntários”, porque notam neles uns sentimento particular de gratuitidade e de solidariedade. Esta observação faz ressaltar como a competência técnico-profissional, se é evidentemente necessária e deve mesmo ser em todos os modos cultivada e enriquecida, sozinha não é todavia suficiente. É necessário unir à alta competência rica sensibilidade humana. Aqueles que louvavelmente se dedicam ao serviço das pessoas deficientes devem conhecer com inteligência científica as deficiências, mas devem, ao mesmo tempo, compreender com o coração a pessoa portadora de deficiências. Esses mesmos devem aprender a tornar-se sensíveis aos sinais próprios de expressão e de comunicação das pessoas deficientes, devem adquirir a arte de fazer o gesto exacto e de dizer a palavra conveniente, devem saber apreciar com serenidade possíveis reacções ou formas emotivas e aprender a dialogar com os pais e os familiares das pessoas deficientes. Esta competência não se tornará plenamente humana se não for interiormente sustentada por disposições morais e espirituais apropriadas, feitas de atenção, sensibilidade e respeito particular por tudo quanto no ser humano é fonte de fraqueza e dependência. O cuidado e a assistência às pessoas deficientes torna-se então — também para os pais, educadores e pessoal de serviço — uma escola: escola responsabilizadora, nobre e elevaste, de autêntica humanidade.

14 . É importantíssimo e mesmo necessário que os serviços profissionais recebam dos poderes públicos apoio moral e material em vista de uma organização e mais adequada possível e de um funcionamento eficaz das intervenções especializadas. Muitas nações têm já, ou estão a dar-se, uma legislação exemplar que define e protege o estatuto legal das pessoas deficientes. Seria vantajoso, para este fim, se as famílias e as organizações de voluntários fossem associadas à elaboração das normas jurídicas e sociais na matéria.

15 . Até a melhor legislação corre todavia o risco de não influir no contexto social ou de não dar todos os seus frutos, se não é recebida pela consciência pessoal dos cidadãos e pela consciência colectiva da comunidade.

As pessoas deficientes, as famílias e os seus parentes constituem parte da grande família humana. Por maior, infelizmente, que possa ser o seu número, elas formam uns grupo minoritário no interior da comunidade. Já só por este facto existe o perigo de não gozarem suficientemente do interesse geral. Acrescenta-se a isto a reacção, muitas vezes espontânea, de uma comunidade que rejeita e reprime psicologicamente o que não se enquadra nos costumes. O homem não deseja enfrentar-se com formas de existência que reflectem visivelmente os aspectos negativos da vida. É assim que se origina o fenómeno da marginalização e da discriminação, como uma espécie de mecanismo de defesa e de afastamento. Todavia, uma vez que o homem e a sociedade são verdadeiramente humanos quando entram num processo consciente e voluntário de aceitação mesmo da fraqueza, de solidariedade e de participação também nos sofrimentos do próximo, deve-se reagir com a educação contra essa tendência de defesa e afastamento.

A celebração do Ano Internacional das Pessoas Deficientes oferece portanto oportunidade propícia para um repensamento mais cuidadoso e global ela situação, dos problemas e das exigências de milhões de seres que integram a família humana, particularmente no Terceiro Mundo. É importante não deixar passar em vão esta oportunidade. Com a ajuda das ciências e com o contributo de todos os organismos da sociedade, ela deve conduzir a melhor compreensão da pessoa deficiente, da sua dignidade e dos seus direitos, e, sobretudo, deve favorecer que se afirme um amor sincero e prático por cada homem na sua unicidade e consistência.

16 . Os cristãos têm uma missão insubstituível para desempenhar neste ponto.

Recordando as responsabilidades que lhes tocam como testemunhas de Cristo, devem fazer próprios os sentimentos do Salvador para com aqueles que sofrem e estimular no mundo a atitude e o exemplo da caridade, para que o interesse pelos irmãos menos dotados nunca venha a faltar. O Concílio Vaticano II reconheceu nessa presença caritativa o núcleo essencial do apostolado dos leigos, recordando ter Cristo feito próprio o preceito da caridade para com o próximo “e enriqueceu-o com novo significado, identificando-se aos irmãos como objecto de caridade… Com efeito, assumindo a natureza humana, Ele uniu a si como família, por certa solidariedade sobrenatural, todos os homens e fez da caridade o sinal dos Seus discípulos, com estas palavras: ‘Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros’ (Jo 13, 35). A santa Igreja, assim como nos seus primeiros tempos, juntando a ‘ágape’ à Ceia eucarística, se mostrava toda unida à volta de Cristo pelo vínculo da caridade, assim em todos os tempos se pode reconhecer por este sinal do amor. E alegrando-se com as realizações alheias, ela reserva para si, como dever e direito próprios, que não pode alienar, as obras de caridade. Por isso, a misericórdia para com os pobres e enfermos, e as chamadas obras de caridade e de mútuo auxílio para socorrer as múltiplas necessidades humanas, são pela Igreja honradas de modo especial” (Apostolicam actuositatem, 8).

Neste “Ano internacional das Pessoas Deficientes” os cristãos quererão portanto estar ao lado dos irmãos e das irmãs de todas as outras organizações, a fim de promoverem, sustentarem e incrementarem iniciativas aptas para se aliviar a situação dos que sofrem e para eles serem harmoniosamente inseridos no contexto da normal vida civil, dentro dos limites do possível; darão o próprio contributo de homens e de meios, recordando especialmente aquelas beneméritas instituições que, no nome e pela caridade de Cristo, com o exemplo maravilhoso de pessoas totalmente consagradas ao Senhor, se aplicam a título especial à educação, à preparação profissional, à assistência pós-escolar dos jovens deficientes, ou ao cuidado generoso dos casos mais dolorosos; as paróquias e as comunidades juvenis de vária denominação quererão dedicar particular cuidado às famílias onde nasce e cresce uma destas criaturas marcadas pela dor, e, ao mesmo tempo, saberão estudar, continuar a aplicar, e, dando-se o caso, rever métodos adequados de catequese para os deficientes, e seguir a participação e a inserção destes nas actividades culturais e nas manifestações religiosas, de maneira que tornem tais sujeitos — que possuem titulo certo para uma apropriada formação espiritual e moral — membros de pleno direito das várias comunidades cristãs.

17 . O Santo Padre, que desde o alvor deste ano, celebrando o Dia da Paz, recordou publicamente na Basílica Vaticana as iniciativas do “Ano Internacional das Pessoas Deficientes”, invocando particulares cuidados para a solução dos seus graves problemas, renova o Seu convite a que se tome a peito a sorte destes irmãos. Recorda de novo o que disse então: “Se ao menos uma mínima parte do ‘orçamento’ para a corrida aos armamentos fosse transferida para este objectivo, poder-se-iam conseguir importantes, resultados e poder-se-ia aliviar a sorte de numerosas pessoas que sofrem” (1 de Janeiro de 1981). Sua Santidade anima as várias iniciativas, que serão empreendidas a nível internacional, como as que se venha a querer tomar noutros campos, incitando sobretudo os filhos da Igreja Católica a darem exemplo da generosidade total. E, ao confiar à maternal protecção da Virgem Santíssima, como fez naquele dia, todos os queridos deficientes do mundo, repete com viva esperança os votos de que, “sob o olhar maternal de Maria, se multipliquem as experiências de solidariedade humana e cristã, numa renovada fraternidade que una os débeis e os fortes, no caminho comum da divina vocação da pessoa humana” (ibid.).

Do Vaticano, 4 de Março de 1981.

(*) Fonte: L’Osservatore Romano, Edição em Português, n. 12, (22 de Março de 1981), pp 6-7) . consultado em http://www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state/archivio/documents/rc_seg-st_19810304_doc-handicap_po.html

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