Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa por ocasião do Ano Europeu da Pessoa com Deficiência 2003.
INTRODUÇÃO
1 – A presença das pessoas com deficiência na sociedade humana é uma constante ao longo da história. O reconhecimento dos seus direitos e a sua inserção social tem sido um processo lento, dinamizado, na segunda metade do século passado, com algumas iniciativas de relevo, entre as quais sobressai a proclamação do ano 1981 como “Ano Internacional dos Deficientes”, por parte da Assembleia Geral da ONU. As múltiplas iniciativas desencadeadas, no decorrer desse ano e daí em diante, pelas mais variadas instituições oficiais e particulares, civis e religiosas, muito contribuíram para dar a conhecer os problemas que afectam as pessoas com deficiência, para promover a publicação de legislação específica sobre questões relacionadas com a temática e para lançar novos programas de intervenção, no âmbito da família, da educação, do emprego e da inserção social.
O reconhecimento de avanços significativos nesta matéria é hoje consensual. Com efeito, criaram-se associações, organizaram-se congressos e jornadas, lançaram-se programas de acção. Os organismos internacionais emanaram recomendações. Os países publicaram novas leis. Editaram-se milhares de publicações, umas de carácter científico e outras de divulgação. A deficiência passou a ser um tema recorrente na comunicação social. Podemos dizer que foi muito o que se fez. Mas o que falta fazer é, sem dúvida, ainda muito mais.
Para ir de encontro à situação actual de carência, o Fórum Europeu declarou o corrente ano de 2003 como «Ano Europeu da Pessoa com Deficiência», com o objectivo de alertar a população da Europa para os problemas das pessoas com deficiência, tentando implementar as soluções mais adaptadas para cada tipo de deficiência e, na medida do possível, reduzir o número de deficientes, que ronda os dez por cento da população. No nosso país, de acordo com a Confederação Nacional dos Organismos de Deficientes, existem cerca de 250 mil deficientes sensoriais, 70 mil deficientes mentais, 150 mil deficientes motores e 140 mil deficientes orgânicos.
2 – Nós, Bispos de Portugal, acolhemos com agrado a decisão do Fórum Europeu. Estimulados pela caridade pastoral, inspirada na mensagem evangélica, apelamos aos fiéis católicos e a todos os homens e mulheres de boa vontade a que, pelos meios ao seu alcance, se empenhem na prevenção, recuperação e inserção social das pessoas com deficiência, tendo em conta que entre nós as causas da deficiência não têm sido combatidas eficazmente.
Na sequência da nossa Nota Pastoral de 1981[1] e de outras tomadas de posição, retomamos o assunto para confirmar e actualizar as orientações pastorais, à luz da situação presente.
A DIGNIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
3 – A dignidade da pessoa humana não resulta das capacidades que possui nem das funções que desempenha. Ela radica na própria natureza humana. Criada por Deus e redimida por Jesus Cristo, que assumiu a mesma natureza, a pessoa humana é dotada de uma dignidade original e única, inviolável e indivisa, que não se baseia na funcionalidade do seu organismo mas na essência da sua natureza.
Não é legítimo estabelecer distinção entre ser humano e pessoa humana e, muito menos, quando com tal distinção se pretende negar àquele a dignidade de que esta está revestida. Todo o ser humano é pessoa e, por isso, todo o ser humano possui o mesmo fundamento para a sua dignidade (cf. GS 24), seja qual for o estado de desenvolvimento, a idade, a saúde, os conhecimentos adquiridos e as possibilidades de intervenção em sociedade.
Por sua vez, é correcta a distinção entre pessoa e personalidade. A qualidade de pessoa adquire-se de uma só vez, desde o início da vida. A personalidade forma-se ao longo de um processo contínuo de desenvolvimento das potencialidades interiores em interacção com o ambiente exterior. A dignidade original da pessoa precede a formação da personalidade e permanece inalterada em qualquer grau de desenvolvimento que se encontre a personalidade.
À luz destes princípios, podemos afirmar que a dignidade da pessoa com deficiência é idêntica à de qualquer outra pessoa, porque também ela foi criada à imagem e semelhança de Deus, porque é membro da mesma natureza humana assumida e redimida por Jesus Cristo, porque, quando inserida pelo Baptismo na comunidade dos crentes, o seu corpo, embora limitado na acção por alguma deficiência, torna-se membro do Corpo de Cristo (cf. 1Cor 6,15). Assim, a sua vida é tão sagrada como a vida de qualquer outra pessoa.
DIREITOS E DEVERES DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
4 – A igual dignidade correspondem direitos iguais. A pessoa com deficiência possui os mesmos direitos fundamentais de qualquer outra pessoa. Em concreto, à pessoa com deficiência não pode ser recusado o direito à vida, à diferença e à expressão de si; o direito a ser amada, a ser reconhecida e a ser respeitada; o direito a receber a ajuda necessária à sua realização pessoal, à inserção na sociedade e à participação activa, em conformidade com as suas possibilidades.
Mas todo o sujeito de direitos é igualmente sujeito de deveres. E, por isso, a pessoa com deficiência não pode fixar-se na reivindicação dos seus direitos. Na medida das suas capacidades funcionais, ela está obrigada ao cumprimento dos seus deveres para com os outros indivíduos e para com a sociedade. É pelo exercício dos direitos e pelo cumprimento dos deveres que a pessoa com deficiência poderá fortalecer a sua auto-estima, promover a sua autonomia social e económica, libertando-se do assistencialismo que inferioriza e degrada.
Dentro das suas possibilidades, à pessoa com deficiência não pode ser recusado o direito nem escusado o dever de participar, directamente ou através dos seus representantes, sejam eles pessoas singulares ou instituições, na planificação, actuação, supervisão e avaliação das acções desenvolvidas pela sociedade e que lhe digam respeito.
A PESSOA COM DEFICIÊNCIA E A SOCIEDADE
5 – A pessoa com deficiência, como qualquer outro ser humano, tem o direito inato à plena inserção no tecido social, cultural e religioso. Porém, a concretização desse direito depende dos poderes públicos, que devem criar as condições necessárias, através de legislação apropriada e da disponibilização dos meios indispensáveis à concretização das normas legais.
Nas últimas décadas, a nível internacional não têm faltado declarações, normas e disposições legais sobre as pessoas com deficiência. E também no nosso país tem sido publicada abundante legislação sobre o assunto, indiciadora de uma nova mentalidade que auguramos se concretize em actos, afugentando o perigo de sermos um país de boas leis e más práticas porque as leis permanecem letra morta.
A esse propósito, convém lembrar aqui o princípio de que a sociedade existe por causa das pessoas e não as pessoas por causa da sociedade. Por isso, a sociedade não pode ser estruturada à margem das pessoas e dos seus condicionalismos. Felizmente, hoje em dia, na via pública, na sinalização de trânsito, nos meios de transporte, nos edifícios de utilização pública e noutros lugares, começam a notar-se sinais positivos de adaptação às limitações de vários tipos de deficiência. No entanto, persistem ainda barreiras arquitectónicas, sociais e culturais, tanto no sector público como no sector privado, que urge eliminar. Como ficou dito, já existe legislação sobre o assunto que importa aperfeiçoar e, acima de tudo, é fundamental que se criem as condições necessárias para que ela possa ser aplicada.
DA EXCLUSÃO À INCLUSÃO SOCIAL
6 – A nossa sociedade está marcada pelo fenómeno da exclusão social. As pessoas com deficiência continuam a engrossar o número dos excluídos. E, apesar de o combate à exclusão social ser hoje um tema recorrente, a sociedade inclusiva continua ainda a ser um ideal demasiado longínquo.
É urgente e indispensável que os avanços da ciência e da tecnologia e que os recursos materiais e humanos da sociedade sejam canalizados para este objectivo superior, nas diferentes áreas da vida social e política.
Na área da saúde, tanto o diagnóstico como a terapêutica de muitas das deficiências humanas conheceram avanços notáveis, propiciadores da prevenção, da cura ou da melhoria das condições de vida. Esperamos que, dentro em breve, esses meios possam ser disponibilizados para todos os que deles precisam. Sem isso, de pouco adiantará a sua existência.
No âmbito da educação, o analfabetismo, a ileteracia e o abandono escolar continuam a ser factores de exclusão. As causas que estão na sua origem são múltiplas. Os inúmeros tipos de deficiência que afectam a população infantil e juvenil são, sem dúvida, uma das causas principais que importa combater. O ensino especial ministrado em instituições especializadas, como no caso dos invisuais e dos surdos-mudos, ou em turmas para alunos com dificuldades de aprendizagem, tem mérito e continua a ser um processo indispensável em muitos casos, mas não está isento de perigos. Também ele segrega e rotula. Também ele abre a porta à exclusão social.
Em alternativa, advoga-se hoje o acesso à educação inclusiva, que permita aos alunos com deficiência, dentro dos limites das suas possibilidades, frequentar os estabelecimentos de ensino regular, seja ele público, privado ou cooperativo. E pensamos que seria uma boa forma de dar visibilidade aos milhares de cidadãos “invisíveis”, circunscritos aos espaços institucionais e de ensinar os outros alunos a conviver com a diferença.
É claro que esse modelo tem custos acrescidos que o Estado, no respeito pela igualdade de direitos das pessoas com deficiência e na assumpção do seu dever de cooperar com as famílias na educação dos filhos, deve suportar, tornando possível a adaptação ergonómica das escolas, a formação especializada dos professores, a disponibilidade de material didáctico e outros apoios complementares.
A inclusão social passa também pelo desempenho de uma actividade profissional, como garantia de autonomia económica e meio de realização pessoal. Porém, o acesso ao patamar profissional tem dificuldades acrescidas que só poderão ser ultrapassadas quando, após a conveniente formação escolar e profissional, lhe forem franqueadas as portas do ambiente laboral, tanto nos organismos estatais como nas instituições e empresas de carácter privado.
Os custos decorrentes da formação profissional e da inserção no mundo trabalho das pessoas com deficiência correspondem à factura que tanto o Estado como as entidades privadas devem pagar pela construção de uma sociedade humanizada. O preço pago pelos deficientes define o nível de humanização atingido por qualquer sociedade.
7 – A humanização da sociedade não passa apenas pela dimensão económica. Antes de mais, ela exige que se desenvolva um saudável esforço por erradicar o nefasto fenómeno da discriminação social, tanto por uma adequada formação ao longo do processo educativo como implementando outros meios, tais como: uma criteriosa revisão e efectiva aplicação das leis vigentes; aposta na investigação científica que optimize a prevenção, a terapia e a redução das sequelas dos muitos tipos e graus de deficiência; supressão das barreiras arquitectónicas que limitam a liberdade de movimentos e de acesso a serviços de capital importância na vida quotidiana, como sejam habitações, escolas, hospitais, repartições públicas, igrejas, lugares de trabalho, espaços de lazer e tantos outros; revisão do sistema de segurança social e serviços de apoio; combate sistemático à violência e todo o tipo de abusos que vitimizam a pessoa com deficiência; criação de condições que reduzam e, na medida do possível, eliminem os acidentes de trabalho e a sinistralidade nas estradas que, infelizmente, continuam a contribuir significativamente para aumentar o número de pessoas afectadas por múltiplas deficiências.
A PESSOA COM DEFICIÊNCIA E A FAMÍLIA
8 – A pessoa com deficiência tem direito a viver em família e a constituir família, se para tal estiver capacitada. Com efeito, é na família que ela pode encontrar o ambiente natural e mais adequado ao seu pleno desenvolvimento e auto-realização.
Por isso, todas as estratégias de tratamento e apoio às pessoas com deficiência deverão ser delineadas tendo em conta a família. Por sua vez, também a família merece ser acompanhada e apoiada. Em primeiro lugar, no momento crítico em que descobre a deficiência de um filho, seja antes ou depois do nascimento, para a ajudar a ultrapassar o choque traumático provocado pela frieza implacável do diagnóstico. Em segundo lugar, ao longo da vida, para que possa educar e promover socialmente o filho que Deus lhe concedeu. E, a esse propósito, queremos deixar aqui bem expresso um sinal do nosso muito apreço por todas as famílias que, com amor e fortaleza de ânimo, aceitam os filhos deficientes ou se dispõem a adoptar crianças com alguma insuficiência física ou mental.
O modelo familiar também é fonte de inspiração e de sucessos terapêuticos para as instituições que cuidam das pessoas com deficiência. Quando se alia a competência profissional com a dedicação sincera e o carinho respeitoso, permitindo aos residentes satisfazer as necessidades básicas de amor e amizade, em conformidade com a sua inalienável dignidade moral, os resultados terapêuticos aumentam qualitativamente. Felizmente, a dedicação e o carinho estão patentes em muitas instituições cujos técnicos e funcionários sabem juntar aos profissionalismo a mais-valia da humanização. Com efeito, a par da protecção contra todo o tipo de promiscuidade e exploração, importa promover uma saudável integração da afectividade propiciadora de um desenvolvimento equilibrado.
A IGREJA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA
9 – A Igreja tem uma longa história de auxílio às pessoas com deficiência. Inspirada no seu divino Fundador, que manifestou uma especial predilecção por toda a espécie de doentes e deficientes a quem acolhia com amor e curava dos seus males, aliou a atitude profética de denúncia das injustiças de que eram vítimas as pessoas com deficiência com a prática da misericórdia em favor das mesmas, promovendo a criação de instituições de educação, de assistência social e de saúde para atender os mais carenciados. Presentemente, na Europa existem mais de trinta mil instituições da Igreja que se dedicam a cuidar dos doentes e de toda a espécie de deficientes. Entre nós, além da Ordem Hospitaleira, que tem a seu cargo mais de metade das camas de psiquiatria, merecem especial referência as Congregações Religiosas e outras instituições particularmente dedicadas a cuidar de crianças, jovens e adultos afectados pelos vários tipos de deficiência.
Iluminada pela palavra do Evangelho e dinamizada pela força do Espírito, a Igreja, consciente de que a obra da evangelização passa pelo «anúncio da Boa Nova aos pobres, a libertação aos cativos e a alegria aos que sofrem» (Lc 4,18), continua ainda hoje, pelas formas mais variadas, a dedicar-se às crianças, jovens e adultos, afectados por diferentes tipos de deficiência. Com efeito, as pessoas com deficiência, com os seus limites, insuficiências e sofrimentos, oferecem aos cristãos múltiplas oportunidades de exercitarem o mandamento novo do amor, tanto pela acção individual como pela intervenção comunitária.
10 – Na sequência do que fica dito e reafirmando o que propusemos na nossa Nota Pastoral, de 19.05.81, recomendamos mais uma vez às comunidades paroquiais, aos movimentos e obras eclesiais que, ao organizarem as suas celebrações litúrgicas e actividades pastorais, tenham em conta as pessoas com deficiência. Trata-se de irmãos nossos que merecem especial carinho, precisam de acolhimento apropriado e têm direito ao conforto que lhes vem de Deus, através da participação activa nas celebrações litúrgicas e da admissão aos sacramentos de iniciação cristã, na medida das suas possibilidades e em conformidade com as normas da Igreja [2].
No âmbito da catequese, são de louvar as experiências inovadoras e bem sucedidas que esperamos sirvam de estímulo aos responsáveis nacionais e locais para a produção de material pedagógico de apoio, que possa ajudar os pais e catequistas que têm crianças com alguma deficiência nos seus grupos.
O reservatório de humanidade e de graça constituído pelo sofrimento poderá ser alimentado pelas pessoas com deficiência, se tiverem quem as ajude a viver as suas limitações em união com Cristo, evangelizando o próprio sofrimento e ajudando a evangelizar o sofrimento dos outros, como forma de realização pessoal no testemunho de vida.
Na esteira da Igreja, que ao longo dos tempos afirmou a sua presença neste sector, todos somos hoje chamados a olhar para as pessoas com deficiência e, particularmente, para os excluídos da sociedade, os sem abrigo, os doentes crónicos e incuráveis, carecidos de acolhimento, apoio e reinserção social. Eles constituem um campo aberto ao exercício da nova “fantasia da caridade”, por parte dos indivíduos, dos grupos e das instituições eclesiais.
Por último, fazemos um apelo às escolas católicas para que, deixando-se guiar pelo ideal evangélico que orienta o seu projecto pedagógico e na medida em que o Estado assuma neste âmbito as responsabilidades que legalmente lhe competem, se abram à educação inclusiva.
SAUDAÇÃO FINAL
11 – A terminar, dirigimo-nos a todas as pessoas com deficiência a quem saudamos com afecto, em nome de Jesus Cristo, o Amigo dos homens que sempre manifestou especial predilecção pelos pobres e pelos doentes, a quem acolhia com ternura e sarava com amor. Olhamos com admiração para aqueles que, assumindo a sua condição com serenidade e com esperança, se esforçam por superar as dificuldades daí decorrentes e, com fortaleza de ânimo, irradiam paz e alegria à sua volta. Compartilhamos os sofrimentos, as penas e as preocupações de todos. ComS. Paulo, a todos exortamos a abraçar a cruz da vida, considerando-os amigos de Jesus Cristo e seus especiais colaboradores na obra da Redenção, conscientes de que, dessa forma, completam na sua carne o que falta à Paixão de Cristo, em favor de toda a humanidade sofredora (cf. Col 1,24).
Deixamos uma palavra de muito apreço a todos os médicos, técnicos de saúde, terapeutas, educadores e pessoal que trabalha em instituições especializadas, a quem estimulamos a prosseguir com generosidade e com esperança os esforços que desenvolvem para prevenir e tratar todo o tipo de deficiência, em ordem a promover uma sociedade onde todas as pessoas vejam respeitada a sua dignidade e gozem do estatuto a que têm direito.
Neste Ano do Rosário, especialmente dedicado a Maria, Senhora das Dores e Mãe da Esperança, voltamos para ela o nosso olhar de súplica, desejosos de aprender com ela a contemplar o rosto de Cristo, na humanidade sofredora, iluminados pela esperança de o ver glorioso na plenitude da vida.
Fátima, 8 de Maio de 2003
[1] Cf. CEP, Nota Pastoral a Propósito do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, Fátima, 19.05.1981.
[2] Cf. Orientações pastorais publicadas pelos Bispos da Zona Centro com o título: “Sacramentos da iniciação cristã e pessoas com deficiências psíquicas graves”, 19.03.1993.