“O nosso filho/a nossa filha com multideficiência poderá receber o Senhor?”

Crónica de Marie Hélène Mathieu (Fundadora do OCH*  e do Movimento Fé e Luz)

A Revista Ombres et Lumière pediu-me para voltar a uma questão essencial sobre as pessoas com deficiência intelectual sobretudo a mais profunda: ”Poderão elas receber a Eucaristia?” Assim, por exemplo, uma mãe com uma filha com graves limitações dizia-me que, para ela, a questão nem se colocava: ”Ela tem um coração puro. É um anjo.” Um  outro   casal  escreveu-nos: “A  nossa  filha Joana foi baptizada e confirmada, tem multi-deficiência e é incapaz de adquirir quaisquer conhecimentos. De qualquer modo achamos que ela nunca conseguiria distinguir o Pão sacramentado do pão comum.”

Desde há uns cinquenta anos, a questão tem evoluído à medida que os especialistas foram descobrindo a “educabilidade” das crianças ditas à época ”deficientes” ou “débeis mentais” e se foram desenvolvendo meios de comunicar com aqueles que pareciam mais profundamente afectados. Também na Igreja se fizeram progressos semelhantes. O Padre Henri Bissonnier suscitou o aparecimento duma catequese especializada. A Arca e o Movimento Fé e Luz apareceram. Constatavam-se as capacidades espirituais destas pessoas. Para muitos deles, abria-se o acesso aos sacramentos, especialmente à Eucaristia. Isto era visto e encorajado por um número importante de bispos que se exprimiam a título pessoal ou colectivo.

Do lado da Santa Sé, Paulo VI e João Paulo II, mesmo testemunhando a sua predilecção carregada de amor e confiança pelas pessoas com deficiências intelectuais, não chegaram a  pronunciar-se a respeito da Eucaristia. Contudo João Paulo II manifestou publicamente o seu pensamento. Em Roma, em 1987, diante de oito mil pessoas reunidas para uma missa, deu a comunhão a Sabina, que ele sabia ser cega e ter uma deficiência intelectual profunda. Francesco e Olga, os pais dela, afirmavam: “De hoje em diante, ninguém mais poderá dizer que as pessoas como Sabina não podem receber a comunhão”.

Capazes de uma relação de intimidade

Em 2005, há uma etapa importante: O Sínodo sobre a Eucaristia! Depois em 2007, o aparecimento do documento de Bento XVI “O Sacramento do Amor”[1], Exortação apostólica sobre a Eucaristia. O Papa retomava aí uma das cinquenta propostas apresentadas pelos bispos e escrevia: “a comunhão eucarística deve ser assegurada, tanto quanto possível, às pessoas com deficiência intelectual, baptizadas e confirmadas: elas recebem a Eucaristia pela fé também da sua família ou da comunidade que as acompanha”. (proposta 58).

Foi portanto a primeira vez que a Igreja, com a sua autoridade, publicou um documento oficial sobre a Eucaristia e as pessoas com deficiência intelectual e ter em conta o grau de deficiência.

Devemos ficar contentes mas não admirados. Esta decisão parece assim responder cabalmente ao desejo de Jesus, quando repreende os discípulos que, por respeito por Ele, seu Senhor e Mestre, queriam afastar as crianças pequenas. Ele ordenou aos discípulos: “deixai vir a mim as criancinhas. Não as impeçais.” Noutra ocasião Jesus confirma a sua preferência: “Pai, eu te bendigo por esconderes estes mistérios aos sábios e aos inteligentes e por os teres revelado aos pequeninos”. Um grande mistério de amor, onde ninguém é excluído. Um amor que se comunica não pela inteligência e pelas exposições teológicas, mas pelo coração e mesmo pelo corpo.

A privação de palavra e de outros meios de expressão numa pessoa com uma deficiência muito extensa, não a pode impedir de viver uma vida ligada a  Deus e de estar em relação íntima com  Ele, pois ela é filha de Deus a partir do baptismo e chamada a participar eternamente da sua glória. E para que esta vida seja alimentada, Deus escolheu este meio simples da Eucaristia.

 

Em que condições?

A Eucaristia não é, contudo, um rito mágico. Requer por norma a fé de quem a recebe. Assim quando este acto explícito lhe é difícil ou mesmo impossível devida às suas limitações intelectuais, é preciso também, como diz o Santo Padre, a fé da família ou da comunidade que a acompanha. Para reforçar esta necessidade o Papa utiliza esta expressão: ”tanto quanto possível”. Que quererá significar? Sugiro três pistas:

  • Que os pais, os primeiros educadores da criança, sejam chamados a discernir com o sacerdote e com a comunidade mais próxima (paróquia, Fé e Luz, catequese especializada…) sobre o momento oportuno para sugerir a primeira comunhão[2].
  • Que a pessoa com deficiência receba uma preparação em função das suas capacidades. O nascer da fé faz-se no seio da família, num clima de amor e de oração, especialmente a da noite à luz de uma vela, com um ícone ou a figura da Virgem, um cântico de louvor ou de intercessão, a leitura de uma passagem do Evangelho…
  • Que a paróquia, comunidade de fé, acolha com alegria a pessoa com deficiência, sejam quais forem as suas limitações, como um membro particularmente precioso da sua família. Não se trata de um indivíduo isolado, mas de um membro do Corpo de Cristo. Pode mesmo dizer-se que é um membro indispensável deste Corpo a quem nós devemos honrar especialmente, como nos diz São Paulo. Da preparação para receber Jesus, fazem também parte as celebrações litúrgicas cheias de alegria e de fervor. E também a maneira como os fiéis recebem num profundo recolhimento o “Jesus-Hóstia”. A sua atitude, bem melhor que as palavras, vêm dizer que não se trata de um simples alimento mas de um encontro pessoal, coração a coração, com alguém que embora invisível está bem presente.

Marie-Hélène Mathieu[3]

* OCH – Office Chrétien des Personnes Handicapés –(Secretariado para as Pessoas Com Deficiência)

[1] Em português está publicada como “Sacramento da Caridade” Exortação Apostólica Pós-sinodal, Bento XVI, Paulinas 2007, sendo no texto recorrentemente utilizada a expressão deficientes e não pessoas com deficiência, como é recomendado há vários anos, mas em especial desde 2003 –  Ano Europeu das Pessoas com Deficiência.

[2]  Por vezes uma pequena parte de hóstia ou algumas gotas do precioso Sangue. Saber respeitar os que parecem recusar. Aceitar a sua própria liberdade.

[3] Traduzido da Revista ‘Ombres et Lumière’, nº 186 – Março- Abril 2012, Nuno Cordovil, revisão Muna Sidarus.

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