Marie Hélène Mathieu, cidadã francesa, dedicou a sua vida às pessoas em situação de vulnerabilidade e às suas famílias. Alice Caldeira Cabral relata a história de vida por ocasião do 90º aniversário (04/07/2019).
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Quem é a Marie Hélène?
Nascida em França numa família numerosa – 6 irmãos e muitos primos e tios que gostavam de se encontrar. A sua infância passa-se no campo, em Tournus na Borgonha, não muito longe de Taizé. Numa entrevista de há cerca de 1 ano à Radio Notre Dame, ela contava como a vida no campo a marcou: um dia aos 5 anos, depois duma grande trovoada, ela e os irmãos saíram para o campo e, de repente, ela viu um arco-íris de volta inteira e ficou fascinada. Perguntou o que era aquilo e os irmãos mais velhos contaram a história de Noé e da promessa de Deus de nunca mais enviar o dilúvio. Tudo aquilo tocou-a profundamente e despertou uma enorme confiança num Deus que faz maravilhas e em quem se pode confiar.
Outro episódio que marcou a sua vida foi o seu encontro com a Alice. Quando tinha 11 anos, na escola havia uma jovem com deficiência de 17/18 anos de quem todos faziam troça. Ela estava sempre na última carteira, tinha um ar estranho e não reagia muito ao que se passava à sua volta. Um dia que a humilhação foi mais agressiva, a Marie-Hélène olhou para trás e viu que a Alice estava a chorar. Era a primeira vez que a Marie-Hélène se dava conta que aquela jovem estranha tinha sentimentos e ficou impressionada. Gostava de a poder consolar mas sentia-se totalmente impotente. Nunca tinha falado com ela e não sabia como entrar em contacto. Pensou para si que quando fosse grande gostaria de aprender a consolar pessoas como a Alice.
O que é que ela fez na sua longa vida que nos faz falar dela hoje?
Estudou e formou-se como Educadora Especializada. Contactava com pais de crianças com deficiências graves, recorda que num caso preciso, os pais estavam em enorme sofrimento. Os médicos tinham-lhes dito: “Não há nada a fazer. Ponham-no numa casa onde o tratem e façam outro filho.” Ela sentiu esta afirmação como um desafio terrível: de não deixar os pais sozinhos com as suas dificuldades reais. Em 1962 houve um célebre processo em Liège (Bélgica) em que uns pais com a ajuda dum médico mataram a sua filha que tinha nascido com uma deficiência. Foram primeiro condenados num tribunal, mas depois de um recurso foram ilibados e mesmo aclamados. A violência do acontecimento provocou um grande choque nas sociedades belga e francesa. A Marie-Hélène sentiu fortemente: “Não são eles que têm a culpa – somos nós todos que os deixamos sós!”
É neste quadro que Marie-Hélène cria o OCH – Serviço Cristão para as Pessoas com Deficiência em 1963. Neste serviço recebe os pais que procuram respostas para os seus filhos, mas que sobretudo precisam de ser escutados. Cria um serviço de escuta e aconselhamento em Paris e em Lourdes.
Inicia um ciclo designado Conferências/Encontros e, com a participação de alguns pais, cria a revista “Ombres et Lumière” (Sombras e Luz) em 1968. É a escuta dos pais, que se sentem socialmente excluídos por causa dos seus filhos diferentes, que motiva a Marie-Hélène a agir. Dá-lhes voz através da Revista que consegue chegar a muitas pessoas mesmo sem ligação directa às questões da deficiência.
Profundamente cristã, enraizada na Igreja católica, ela considera um escândalo o desprezo e o desinvestimento nos mais pequeninos. Refere sempre citando Jesus: “o que fizeres ao mais pequenino, é a Mim que o fazes”.
Da dinâmica do OCH nascem várias iniciativas:
Em 1971 funda com Jean Vanier o Movimento Fé e Luz. Este nasce da escuta dum casal com dois filhos com deficiências graves que pretendia ir a Lourdes integrado na Peregrinação diocesana, mas a quem é dito que os meninos não podiam ir porque iam incomodar toda a gente e eles não percebiam nada. O casal foi pelos seus próprios meios, mas sentiu lá também que os seus filhos não eram bem-vindos. Profundamente escandalizada com a situação, a Marie-Hélène fala com o Jean Vanier, com quem colaborava regularmente no âmbito da ARCA, e, com os pais, surge a ideia de organizar uma grande peregrinação para famílias com filhos com deficiência. Propõe-se uma preparação de três anos em pequenas comunidades de famílias, seus filhos com deficiência e jovens amigos. Os encontros seriam mensais de celebração, amizade e oração. Na Páscoa de 1971 realiza-se a peregrinação em ambiente de grande festa e alegria e os participantes dizem que não querem ficar por ali: querem continuar a encontrar-se e aprofundar a experiência que ali viveram. O Jean responde-lhes que façam o que o Espírito Santo lhes inspirar e o Movimento nasce. O Movimento nasceu logo internacional e ecuménico. Na peregrinação fundadora participam 12 mil pessoas vindas de 15 países. Hoje em dia o Movimento está presente em 86 países, conta 1420 comunidades repartidas em 53 províncias nos cinco continentes, com 38 línguas diferentes.
A Marie-Hélène afirma: a rejeição diante duma pessoa muito diferente é normal, mas sempre que aceitamos aproximar-nos da pessoa, ela transforma o nosso coração. É este o testemunho dos jovens que fazem parte das nossas comunidades Fé e Luz.
Das iniciativas que desenvolve em torno da revista e das Conferências/Encontros nasce em 1982 um Movimento para as famílias com pessoas com doença mental – chamou-se: Relais d’Amitié et prière[1] que se chama actualmente “Relais Amitié Esperance”[2]. É, mais uma vez, a Marie-Hélène que suscita o encontro das pessoas que vivem a problemática, sempre à luz da Esperança que vem do amor que Deus tem por aqueles pequeninos, em relação aos quais não é óbvio nem directo que se descubra a beleza escondida e o sentido das suas vidas. A partilha e a oração em grupo ajuda. Há grupos deste Movimento por toda a França.
No fim dos anos 90, após a publicação dum estudo sobre as sequelas dos traumatismos cranianos, a Marie-Hélène promove um encontro das famílias e outros interessados e daí nasce a Associação Simon de Cyrene, actualmente Federação, que instala e anima casas partilhadas de pequena dimensão, nos centros das cidades, onde vivem pessoas sem deficiência junto com outras que adquiriram deficiências durante as suas vidas, por acidentes, AVCs ou outras etiologias. O funcionamento dos lares é inspirado nos da ARCA, fundada por Jean Vanier e o seu lema é: Juntos, demos um novo sentido às nossas vidas. Está em franca expansão em França.
Marie-Hélène não teve nenhum familiar com deficiência mas entregou e continua a entregar a sua vida a tentar revelar a todos e, em especial, às Igrejas cristãs, onde tem as suas raízes, que estas pessoas são uma pedra angular das sociedades e da Igreja; que pertencem à comunidade e devem viver no meio de todos, porque nos tornam mais ricos e mais humanos.
Conheci a Marie-Hélène no início dos anos 90, por ter recorrido ao OCH, quando procurava um apoio para o meu filho com deficiência em Paris, com a família, durante o tempo que o meu marido ficaria lá com uma bolsa. Acolheu-me com muito carinho e deu-me informações muito precisas. Acabei por perceber que esse projecto não se podia concretizar. Em 1996 voltei a encontrá-la no Retiro pregado por Jean Vanier no Porto. A Direcção do Movimento reuniu no Porto por essa ocasião. Reconheceu-me logo e lembrava-se do meu nome o que me impressionou muito. Nessa altura já estava envolvida no Movimento na Comunidade de Évora.
Obrigada querida Marie-Hèlène e muitos parabéns no dia 4 de Julho por uns 90 anos de que todos beneficiamos tanto!
Alice Caldeira Cabral
Évora, 24 de Junho de 2019
[1] Relais tem o sentido de uma paragem para descanso, numa longa viagem stressante, proponho traduzir por “Paragem” de Amizade e Oração – uma luz na noite”.
[2] “Paragem Amizade Esperança – uma luz na noite” »